No Japão moderno, a relação entre religião e tecnologia, e entre religião e ciência, é notavelmente desprovida de conflito público. Essa convivência não é uma trégua temporária, mas sim um compromisso arquitetado que foi cuidadosamente elaborado nos templos, escolas e tribunais do século XIX. Este cenário é visível em exemplos como a placa no Santuário de Kompira, dedicada ao deus dos marinheiros, agradecendo pela viagem segura de Akiyama Toyohiro, o primeiro cosmonauta do Japão. Outros exemplos incluem modelos mecânicos do cosmos budista do século XIX e até um stupa budista dedicado a Thomas Edison e Heinrich Hertz como “Patriarcas da Eletricidade e Ondas Eletromagnéticas”.
Um Mundo Empoderado: a Medicina Budista e o Poder da Oração no Japão, um estudo de Jason Ānanda Josephson Storm
Uma das questões centrais nesse compromisso é o poder da oração, e o conceito de kaji (empoderamento) oferece uma compreensão profunda da fusão entre o tecnológico e o ritual na prática religiosa japonesa contemporânea.
O Budismo como Medicina: Oração e Empoderamento no Japão Pré-moderno
Antes da demarcação contemporânea de uma esfera autónoma para a religião (distinta da ciência e da política), o Budismo era, fundamentalmente, medicina, e a oração empoderada era uma importante tecnologia terapêutica. O próprio Buda é descrito como o “grande rei dos médicos” que discerne doenças e prescreve remédios. A eficácia dos rituais budistas para operar maravilhas neste mundo, apesar de ser mais tarde rejeitada como superstição, era um componente primário do Budismo ortodoxo.
A instituição budista beneficiava da crença generalizada no poder prático de seus rituais. Coleções de contos como Konjaku Monogatarishū atribuíam à oração budista uma ampla gama de resultados, incluindo melhores renascimentos, cura acelerada, proteção contra incêndios, aumento das chuvas e até mesmo resultados moralmente ambivalentes, como a vitória em batalha.
A promessa de cura milagrosa era crucial para a missão do Budismo. A prática de cura não era meramente simbólica ou espiritual. Guias como o Edo Shinbutsu Gankake Chōhōki indicavam quais templos eram úteis para o tratamento de certas doenças, e folhetos populares anunciavam curas realizadas por clérigos budistas e a farmacologia budista. Essas atitudes não se restringiam à população não educada, mas apareciam em textos de intelectuais, oficiais do governo e sacerdotes budistas, descrevendo terapias budistas específicas para diversas doenças.
Um exemplo concreto da medicina budista pode ser encontrado em escrituras canónicas como o Sutra de Avalokitesvara Bodhisattva de Mil Mãos e Mil Olhos sobre o Tratamento de Doenças e a Preparação de Medicamentos. Este sutra inclui materiais para diagnóstico e tratamento, como uma prescrição para complicações de mortalidade antenatal que envolve a preparação de uma infusão de uma erva abortiva junto com a recitação repetida de uma “encantamento mágico” ou mantra. O mantra é central, pois sua repetição e a prática de cura estão conectadas à obtenção do poder de um bodhisattva e a fins soteriológicos (salvação).
Conforme observado pelo budólogo suíço Paul Demiéville, “Todo o Budismo é uma única terapêutica”, integrando terapias religiosas (adoração, meditação), mágicas (encantamentos, exorcismos) e médicas propriamente ditas (farmacologia, dietética, cirurgia). A oração ritual não era percebida como menos instrumental ou menos “tecnológica” do que outras práticas médicas; ela constituía uma tecnologia terapêutica na caixa de ferramentas medicinais budistas.
O “empoderamento” (kaji) serviu como uma estrutura explicativa para a eficácia desses diversos rituais. A prática do kaji permitia ao sacerdote enriquecer a matéria comum, transformando, por exemplo, um cinto em um auxílio ao parto ou caracteres escritos em um talismã protetor. O kaji não operava uma simples transformação binária do profano no sagrado, mas infundia objetos com diferentes energias de entidades diversas para cumprir uma gama de funções, do curativo ao bélico. Esses artefatos empoderados tornavam-se componentes de uma tecnologia ritual destinada a produzir um efeito específico no mundo.
A Desqualificação da Oração: O Tratamento como Doença no Período Meiji
No século XIX, o estatuto da cura budista inverteu-se radicalmente, passando de prática médica estabelecida a uma “doença” criminosa. Isso se tornou evidente em incidentes como a prisão de Tanaka Hisajirō em 1876 por realizar rituais de cura ilegais. O governo japonês não apenas rejeitou a eficácia desses rituais, mas os via como “cânceres perigosos” no corpo político.
As primeiras críticas sistemáticas à cura ritual budista não vieram de observadores europeus ou elites japonesas escolarizadas em ciências ocidentais, mas sim de pensadores neoconfucianos japoneses. A maioria dos praticantes de medicina era budista, mas a partir do final do século XVI, surgiram centros independentes de estudo de medicina que combinavam medicina com os clássicos confucianos. Esses profissionais de medicina emergentes viam os rituais de oração como charlatanismo popular, incompatível com sua abordagem de elite da medicina.
A antipatia ao “charlatanismo” foi um tema comum nos escritos neoconfucianos, baseada no clássico confuciano O Registro dos Ritos, que condenava “adoração licenciosa” e permitia matar aqueles que enganavam as massas através de “deuses demoníacos”. Pensadores neoconfucianos posteriores estenderam essa crítica a toda a tradição médica budista. Chihara Tei (1774–1840), um médico e estudioso neoconfuciano, condenou especificamente o kaji, associando-o a “encantadores malvados” que enganavam os ignorantes e prejudicavam o governo.
Com a introdução da medicina ocidental, inicialmente banida como “feitiçaria bárbara” mas depois valorizada por sucessos como a vacinação, o cenário médico japonês mudou drasticamente. A percepção da tecnologia ocidental, como telescópios e canhões, desafiou a completude metafísica das ideologias existentes no Japão (Budismo, Neoconfucianismo, Xintoísmo). Essa importação de tecnologia e textos científicos ocidentais introduziu uma nova “moldura” (Ge-stell) de representação do mundo, que priorizava a ordem matemática e a instrumentalidade.
A reconciliação retórica foi encontrada na figura do estudioso neoconfuciano Sakuma Shōzan, com seu slogan “Ética Oriental, Aprendizado Técnico Ocidental” (tōyō dōtoku, seiyō gakugei). Isso evoluiu para o popular “Espírito Japonês, Técnica Ocidental” (wakon yōsai). Embora significasse a preservação da identidade cultural e ética tradicionais, implicava também que a tecnologia ocidental poderia ser vista como ontologicamente neutra. No entanto, essa frase criou um novo dualismo, concedendo à técnica ocidental autoridade sobre o “mundo superficial da forma”, enquanto reservava o “mundo mais importante da virtude” para as ideologias indígenas.
Após a Restauração Meiji em 1868, o novo governo priorizou um sistema médico de estilo ocidental. Nagayo Sensai, um médico japonês que estudou na Alemanha, estabeleceu o Departamento de Assuntos Médicos e desenvolveu o conceito de “policiamento da vida” (eisei), transformando a saúde individual em uma responsabilidade do Estado para produzir cidadãos saudáveis, adequados para servir como soldados e súditos. Ele considerava a medicina kanpō (tradicional chinesa/japonesa) inútil e, em 1876, uma regulamentação exigiu que todos os praticantes médicos estudassem medicina ocidental, marcando o início da eliminação ativa das práticas médicas indígenas.
Os sucessores de Nagayo descreveram as formas indígenas de medicina como ineficazes e antiéticas, tratando-as como uma “doença bárbara” a ser eliminada para a saúde da nação japonesa. Uma ordem governamental de 1874, emitida pelo Ministério da Doutrina, proibiu “a cura por meio de rituais mágicos e similares” por “obstruir o governo”. Essa regulamentação, inicialmente parte de um programa xintoísta para restringir a religião popular não institucional, foi mais tarde moldada pelo compromisso do governo com a política médica de “policiamento da saúde”.
O romance “O Bolinho de Veneno Vermelho e Branco” (1891) de Ozaki Kōyō, que satirizava um grupo religioso fictício, contribuiu diretamente para a aceleração da campanha contra as práticas populares de cura. O romance era uma crítica velada ao movimento religioso Renmonkyō, que afirmava que sua água benta curava doenças como a cólera. Um artigo de jornal popular expôs supostas “impropriedades sexuais e exploração de superstições populares para ganho financeiro” do Renmonkyō, resultando na proibição de sua água benta (que continha amónia) e na dissolução do grupo.
Após o incidente Renmonkyō, a atenção pública para “cultos malignos” aumentou. Manuais escolares primários patrocinados pelo governo, especialmente após 1903, começaram a desencorajar ativamente “superstições” (meishin). As crianças eram explicitamente ensinadas a evitar a superstição, tratando o ceticismo intelectual como uma virtude e uma “vacina” contra as “doenças morais” públicas produzidas por pessoas fraudulentas. Listas de superstições incluíam especificamente “Não acredite em oração empoderada (kaji kitō)” e “Não confie na eficácia da magia ou água benta”.
O código penal de 1907 criminalizou a “obstrução do tratamento médico através da realização de feitiços, orações ou magia para pessoas doentes, ou distribuição de amuletos ou água benta”, estabelecendo uma oposição direta entre o tratamento médico ocidental e as práticas de cura populares. Embora alguns desafios legais tenham ocorrido, como o caso de Hanada Mataichi em 1910, a tendência geral foi o desempoderamento sistemático dos curandeiros rituais.
Debates Budistas: Uma Divisão ou Revisão do Mundo
Diante das críticas e regulamentações estatais, os líderes budistas começaram a reavaliar a oração empoderada. Enquanto alguns pediam sua eliminação completa, defensores vocais emergiram, especialmente da escola Shingon. Em jogo nesses debates não estava apenas o papel de uma prática ritual específica, mas a maneira como o milagroso e o mecânico poderiam se encaixar em uma visão unificada ou dividida do cosmos.
O filósofo budista leigo Inoue Enryō, um crítico proeminente das “superstições” budistas, dividiu a oração empoderada em duas categorias:
- A parte “justificável” ou “lícita” (seitō), enraizada na “devoção sincera e de todo o coração”, que ajudava a cultivar a verdadeira fé e deveria ser permitida.
- A parte “injustificável” ou “ilícita” (fuseitō), que ele conectava à “adoração licenciosa”, retratando-a como irracional e imoral.
Para Inoue, a oração empoderada adequada era enraizada em motivos altruístas ou devocionais, e não em intenções egoístas ou focadas em benefícios mundanos. Ele argumentava que o kaji era uma prática meditativa e psicológica, desconectada do milagroso. Para ele, a oração empoderada não era “budismo original”, mas sim um “descendente insalubre” da confusão entre Budismo e Xintoísmo. Inoue defendia uma divisão fundamental entre o mundo material e o espiritual, onde nem Budas nem deuses tinham controle sobre a existência material. Assim, a causa das doenças deveria ser buscada nas leis da saúde humana, não em maldições ou demónios. Para ele, os benefícios da oração eram psicológicos ou espirituais, não físicos.
Muitos budistas, no entanto, rejeitaram os apelos para abolir a oração empoderada. O periódico “Kaji Sekai” (O Mundo Empoderado), publicado pela escola Shingon, defendeu uma nova posição. Um artigo pseudónimo argumentava que distinguir “superstição” de “verdadeira crença” era quase impossível, pois o conhecimento científico era relativo e em constante mudança, não fornecendo acesso à verdade absoluta. Assim, o que era considerado superstição hoje poderia ser visto como verdade amanhã.
O sacerdote Shingon Kobayashi Uhō, em seu artigo “O Significado do Mundo Empoderado”, argumentou que a reação popular ao kaji como magia era baseada em uma compreensão equivocada. Na doutrina Shingon, todos os eventos neste universo resultam das manifestações do corpo de dharma do Buda Cósmico. Para Kobayashi, este mundo é o “mundo empoderado” (kaji sekai). Assim como os seres vivos dependem da luz do sol, todos os seres sencientes dependem das energias do Buda. Ele rejeitou a divisão de Inoue entre aspectos espirituais e materiais, pois isso confinaria o Buda Cósmico ao plano espiritual, quando, na verdade, o Buda Cósmico é a totalidade do cosmos. Para Kobayashi, os rituais de empoderamento, em sua capacidade de ligar o praticante ao Buda Cósmico, o humano ao mundo, são fundamentais para a filosofia Shingon e não podem ser removidos sem ferir fatalmente o sistema.
O Empoderamento Hoje
Embora os debates sobre a eficácia da oração não tenham sido completamente resolvidos, as práticas de oração empoderada ainda podem ser encontradas em todo o Japão. Embora o governo Meiji tenha conseguido desestabilizar radicalmente a medicina budista como uma instituição independente, falhou em erradicar a cura ritual.
Hoje, a cura empoderada continua sendo praticada em conjunto com a medicina moderna, funcionando apenas em capacidade suplementar. Uma decisão da Suprema Corte de 1963 reforçou os precedentes da era Meiji, permitindo a oração curativa desde que ela suplementasse, e não substituísse, o sistema médico ocidentalizado dominante. A lógica do empoderamento foi deslocada para uma função análoga na cura contemporânea: o kaji é agora entendido por muitos como um ritual que aumenta a eficácia dos cuidados médicos modernos. Essa lógica se reproduz fora da esfera médica, onde rituais indutores de maravilhas agora complementam esforços tecnológicos, como no exemplo do Santuário de Kompira para a segurança de astronautas.
Apesar dessa complementaridade percebida, o Budismo permanece parte de um domínio demarcado como “religioso”, perpetuando uma distinção artificial entre esferas de conhecimento discretas. Essa partição contribuiu para a eliminação gradual da maior parte da instituição médica budista. No entanto, os rituais de oração, existindo “entre as molduras” do instrumental-tecnológico e do religioso-espiritual, continuam a ser realizados para propósitos tanto mundanos quanto extramundanos. Sua eficácia, no entanto, é agora frequentemente medida por critérios originários do contexto médico moderno, como a contagem de glóbulos brancos. Sacerdotes Shingon como Oda Ryūkō dedicaram suas vidas a promover a oração empoderada dentro do sistema médico japonês, usando testemunhos de médicos para argumentar sua eficácia no tratamento de várias doenças.