50 Anos de Mente Zen, Mente de Principiante

Por José Prata, Editora Lua de Papel.

Para uma criança, tudo é novo, tudo é visto como se fosse pela primeira vez. Com a passagem dos anos, porém, perde-se esse olhar virgem, deixamos de olhar para as coisas como fazendo parte de um momento único e irrepetível; por outras palavras, deixamos de ver a realidade que nos rodeia, deixamos de estar presentes no tempo, afastamo-nos para o interior da nossa cabeça. 

Mente Zen, Mente de Principiante, o livro do mestre Shunryu Suzuki publicado em 1970, não faz milagres, não nos devolve a capacidade perdida de olhar para o mundo como se ele fosse novo; mas ao usar o Zen como pretexto, revela-nos os processos da mente, o modo como nos deixamos iludir pela ideia da dualidade, o modo como nos deixamos levar pelo pensamento. E ao fazê-lo, é como se nos limpasse uma janela embaciada e nos permitisse olhar de dentro para fora (ou de fora para dentro) com uma clareza há muito perdida. 

O livro é isso, mas muito mais; um tratado de Neurociências sem o jargão científico; uma obra-prima espiritual onde o pensamento religioso não tem lugar; e, acima de tudo, um clássico absoluto sobre o Zen, que recomendo a qualquer leitor. 

Excerto de Mente Zen, Mente de Principainte

Respiração

“Aquilo a que chamamos ‘Eu’ é apenas uma porta basculante que se move quando inspiramos e quando expiramos.”

Quando praticamos zazen, a nossa mente segue sempre a nossa respiração. Quando inspiramos, o ar entra no mundo interior. Quando expiramos, o ar sai para o mundo exterior. O mundo interior é ilimitado, e o mundo exterior também é ilimitado. Podemos dizer “mundo interior” ou “mundo exterior”, mas, na verdade, apenas existe um único mundo. Neste mundo ilimitado, a nossa garganta é como uma porta basculante. O ar entra e sai como se passasse por uma porta basculante. Se pensares “Eu respiro”, o “Eu” está a mais. Não existe nenhum eu para dizer “eu”. Aquilo a que chamamos “eu” não passa de uma por- ta basculante que se move quando inspiramos e quando expiramos. Ela limita-se a mover-se; nada mais. Quando a tua mente se encontra suficientemente pura e calma para seguir este movimento, não existe nada: não há “eu”, não há mundo, não há mente nem corpo; apenas uma porta basculante.

Por isso, quando praticamos zazen, a única coisa que existe é o movimento da respiração, ainda que tenhamos de ter consciência desse movimento. Não te deverás distrair. No entanto, teres consciência desse movimento não significa teres consciência do teu pequeno eu, mas antes da tua natureza universal, ou natureza de Buda. Este tipo de consciência é muito importante, pois habitualmente

somos demasiado unilaterais. A nossa compreensão habitual da vida é dualista: tu e eu, isto e aquilo, bom e mau. Porém, na verdade, essas discriminações são, em si próprias, a consciência da existência universal. “Tu” significa ter a consciência do Universo sob a forma de tu, e “eu” significa ter a consciência dele sob a forma de eu. Tu e eu são apenas portas basculantes. Esse tipo de compreensão é necessário. Nem se lhe devia chamar compreensão; trata-se na realidade da verdadeira experiência da vida através da prática do Zen.

Por isso, quando se pratica zazen, não há qualquer noção de tempo ou de espaço. Poderás dizer: “Sentámo-nos às 05h45 nesta sala.” Desse modo, terás uma noção de tempo (05h45) e uma noção de espaço (nesta sala). Porém, na verdade, a única coisa que estás a fazer é permanecer sentado e a ter consciência da actividade universal. Nada mais. Neste momento, a porta basculante abre-se numa direcção e, no momento seguinte, a porta basculante irá abrir-se na direcção contrária. A cada momento, cada um de nós repete esta mesma actividade. Não existe aqui noção de tempo ou de espaço. O tempo e o espaço são uma só coisa. Poderás afirmar: “Preciso de fazer uma coisa esta tarde”; mas, na verdade, não há “esta tarde”. Fazemos as coisas uma após a outra. Nada mais. Não há nenhum tempo que seja “esta tarde” ou “à 01h00” ou “às 02h00”. À 01h00 irás almoçar. Almoçar é em si 01h00. Irás estar num lugar qualquer, mas esse lugar não pode ser separado da 01h00. Para uma pessoa que aprecie verdadeiramente a vida, são uma e a mesma coisa. Mas quando nos fartamos da nossa vida, podemos dizer: “Não devia ter vindo a este lugar. Talvez fosse muito melhor ter ido almoçar a outro lado. Este lugar não é assim tão bom.” Na tua mente, crias uma ideia de lugar separada de uma hora real.

O livro

Mente Zen é uma dessas expressões enigmáticas que os mestres Zen usam para nos obrigar a olhar para dentro e interrogarmo-nos: conhecerei de facto a minha mente? A minha mente é aquilo que estou a pensar agora? E se a seguir nos sentarmos, se fisicamente nos imobilizarmos e tentarmos perceber o que é a nossa mente e onde se localiza, então já começámos a prática do Zen, já começámos a entrever a mente ilimitada. A inocência dessa pergunta inicial – quem somos – é a Mente de Principiante, é a mente aberta, que abarca todas as dúvidas e possibilidades, é a Mente Zen. 

Este livro nasceu de uma série de palestras que o mestre Shunryu Suzuki deu a um pequeno grupo de praticantes em Los Altos, Califórnia. É uma aproximação informal ao Zen, firmemente ancorada no momento presente e na realidade quotidiana. Aborda a postura e a respiração, a atitude e compreensão necessárias à prática Zen. Mas também alguns conceitos abstractos, como a não dualidade, o vazio e a iluminação. 

Mente Zen, Mente de Principiante é talvez o mais relevante livro sobre Zen do século XX. Traduzido em praticamente todo Ocidente, conhece agora a primeira edição portuguesa. Ao lê-lo começamos a compreender o que é verdadeiramente o Zen. E, mais importante ainda, começamos a perceber que é possível sermos livres.  

O autor

Shunryu Suzuki, descendente espiritual directo de Dogen (o grande mestre Zen do século XIII) era já um respeitado mestre no Japão quando, em 1959, chegou os Estados Unidos. Suzuki tinha planeado uma estadia breve, mas ficou de tal modo impressionado com a “mente de principiante” dos discípulos ocidentais que acabou por radicar-se em São Francisco. Criou ali um grupo de meditação, o Zen Center, que começou a atrair um número cada vez maior de participantes. O interesse crescente dos americanos levou-o a fundar o Zen Mountain Center, o primeiro mosteiro Zen a nascer fora da Ásia. Várias das suas palestras “americanas” foram gravadas por Marian Derby, que teve a ideia de fazer este livro. As transcrições foram posteriormente editadas por um dos discípulos, Richard Baker. A obra seria publicada em 1970. Um ano depois morria Shunryu Suzuki, aquele que é considerado um dos mais influentes mestres Zen do século XX.

Este livro saiu no #1 da Revista Budismo, uma resposta ao sofrimento.