Sem Limites: A Via do Bodhisattva

Porque estás infeliz? Não estejas infeliz! O mundo é maravilhoso! Tudo é perfeito! 

Por Roshi Amy Hallowell

Tenho estado a pensar numa pergunta que alguém me fez ontem: alguma vez se menciona compaixão nesta prática do Zen? É enfatizada de algum modo? Tenho vindo a pensar na melhor maneira de responder à pergunta, fazendo-a a mim mesma. Tenho muitas respostas para ela e dei algumas delas ontem, quando a questão surgiu pela primeira vez. Mas raras vezes fico satisfeita com as respostas que dou às perguntas que vocês me fazem; aliás, parte de mim nunca fica satisfeita. Tudo fica sempre em aberto. Portanto, não sei muito bem como tratar a questão, a não ser contando algumas histórias e falando-lhes da minha experiência, que é o que faço todos os dias. Não lhes vou a contar algo que li num livro ou que memorizei ou que alguém me disse; tudo o que aqui partilho vem da minha própria experiência. 

Assim, vou começar com uma história que aconteceu comigo. Há alguns anos, depois de um retiro em Inglaterra – eu era ainda uma jovem praticante – vinha na viagem de regresso para Londres com os meus amigos num comboio de manhã cedo. Acontece que todas as pessoas no comboio àquela hora iam a caminho do trabalho, ou assim parecia. Tínhamos estado numa vila perto o suficiente de Londres para que as pessoas que ali vivessem se pudessem deslocar para o trabalho todas as manhãs. Eu e os meus companheiros do retiro sentíamo-nos muito bem – contentes, rindo, aproveitando a companhia uns dos outros – e não prestámos muita atenção a mais ninguém. 

A determinada altura, por alguma razão olhei em redor de mim para estas pessoas à nossa volta – muitas estavam de pé porque todos os lugares estavam ocupados (o comboio ia muito cheio) – e de repente dei-me conta da sensação de que todas elas pareciam terrivelmente desconfortáveis. A minha primeira impressão foi: As suas roupas não assentam bem. Ou: As roupas são de um tecido cru ou sintético que não é macio. Parti do princípio de que algo nas suas roupas era desconfortável. Era um desconforto que eu podia reconhecer. 

Reconheci aquela sensação – as calças a arranhar, ou uns sapatos muito apertados, ou a etiqueta da camisola ou T-shirt que é irritante. Eu conheço esta sensação muito bem! E o maior desejo naquela situação é que o desconforto pare. Ficamos obcecados com esse desejo. Quanto mais pensamos nisso, pior; muito pior do que se não estivéssemos sequer a pensar nisso. As calças arranham muito mais e a sensação parece alastrar. A etiqueta irrita cada vez mais. 

Ali estava eu, olhando para aquelas pessoas, perguntando a mim mesma: «Porque estão elas tão desconfortáveis? Porque estão a usar roupas que não lhes assentam bem?» Mas antes que a resposta viesse, rapidamente me virei para os meus amigos e a sua agradável companhia. Apenas mais tarde, chegados a Londres e seguindo caminhos diferentes, me ocorreu que o desconforto não estava nas roupas. Percebi que tinha ignorado o desconforto daquelas pessoas e voltado para a companhia dos meus amigos porque não queria saber daquele desconforto. Não queria vê-lo. 

Naquela altura estava naquilo a que chamo «estado de graça»: tudo era maravilhoso e sagrado e eu queria dizê-lo a toda a gente. Queria viajar aos quatro cantos do globo e espalhar a palavra. Assim, o meu primeiro pensamento era ir ter com estas pessoas e dizer-lhes: «Porque estás infeliz? Não estejas infeliz! O mundo é maravilhoso! Tudo é perfeito!» Se tivesse na altura grinaldas de flores, tinha-as posto à volta de cada pescoço no aeroporto de Heathrow. Felizmente, não o fiz! Se o tivesse feito, talvez me tivessem levado e fechado num lugar qualquer. 

Percebi, conforme o tempo foi passando, que o que eu tinha vivido naquela manhã foi o que nos ensinamentos budistas se chama sofrimento inerente à vida. Este foi o primeiro ensinamento do pequeno Buda Shakyamuni: Estar vivo é sofrer. Ao ouvir isto, podemos pensar: «Sofrimento inerente à vida? Viver é sofrer? Ah, isso é horrível e pessimista!» Mas não é o que pensamos nesta prática. Não é nada de dramático. É apenas como se as nossas roupas não nos assentassem bem. Há um certo desconforto indescritível que pode ser vivido em vários planos – em extrema tristeza, desapontamento ou frustração. Pode ser ansiedade, raiva, ciúme, impotência, medo ou dúvida. Às vezes pode ser subtil, desconfortável, aborrecido, outras vezes, muito pronunciado. Às vezes, nem sequer nos damos conta; não lhe prestamos atenção. Aprendemos desde cedo a como não lhe prestar atenção – e a voltar à conversa com os nossos amigos – ou a dizermos a nós mesmos que não é nada. Em criança, os nossos pais provavelmente fizeram por isso: «Não, não, não, não é nada… Toma uma bolacha… Não é giro este balão vermelho?» Aprendemos muito depressa a não lhe prestar atenção. Assim como toda a gente à nossa volta. Mas está ali. E tende a voltar sob formas às quais não estamos acostumados. 

Podes ler este artigo na íntegra na revista #2 de Budismo, uma resposta ao sofrimento.


Roshi Amy Hallowell

Roshi Amy «Tu est cela» Hollowell é professora de Zen, poeta, mãe, tradutora e jornalista. Nasceu em Mineápolis mas vive desde 1981 em Paris. Fundou a Wild Flower Zen Sangha, em França, e a Associação Zen Flor Silvestre, em Portugal. Orienta nos dois países retiros de meditação e organiza workshops de escrita e meditação. 

Revista #2 Dezembro 2020

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